Quando iniciei no Taekwondo em 1981, em Dias d`Ávila, através do meu irmão (Mestre Antonio Leite) e do seu professor direto (o Mestre Brito, o "Índio", também conhecido por "Baiano" no Rio de janeiro), eu conhecí a marcialidade do Taekwondo (tão contestada atualmente) e o rigor nas aulas ministradas pelos dois, seriedade extrema, próxima do militarismo mesmo, nada de "Você", era "Senhor" o tempo todo.
Algum tempo depois nos foi apresentado um professor de quem eu ouvira falar dos seus feitos em competições pelo Brasil e que eu e meus outros irmãos tinhamos a maior curiosidade em conhecer, de tanto que Leite falava e elogiava.
Como eu tinha pouco mais de oito anos, imaginava um verdadeiro guerreiro, daqueles que dá medo de olhar ou até mesmo de passar perto.
No dia em que se soube que este cara iria participar de uma aula na antiga academia Kirab foi um verdadeiro "fuzuê", todo mundo mandou lavar e engomar os Doboks, arrumamos a academia para recebê-lo (sobrou para mim, claro...), minha mãe fez um almoço gigante e ficamos a esperar o grande campeão, com toda a pompa que deveria vir junto à ele, embora Leite nos avisasse o tempo todo de que se tratava de "um cara simples e sem frescuras".
Um homem com tantos títulos não poderia ser "simples", ninguém acreditava nas histórias que rolavam sobre as andanças deles dois (algumas impublicáveis, infelizmente), e tudo foi preparado para um "nobre".
Às sete da manhã de um sábado, eu estava de pé, com mochila pronta para a aula que só começaria às nove, pois de tanta ansiedade que estava, não havia dormido direito.
Às oito já estava na academia realizando o que era minha obrigação desde que havia iniciado as aulas conforme acordo com meu irmão: Varrer todo o chão para pagar as aulas.
Às nove a aula iniciou sem o tal do Orides, e continuou mesmo com meu irmão saindo toda hora à porta para olhar a rua.
Perto do meio dia, quase no fim da aula, chega um amigo de minha família na academia avisando a meu irmão que havia um cara pela cidade à procura da "Academia de Leite", e como alguns praticantes de outras artes marciais por diversas vezes desafiaram meu irmão, o amigo assustadíssimo achou que se tratava de mais um, mas meu irmão de bate-pronto falou:
- Só pode ser Folgado!
E saiu de dobok pela rua afora...
Dez minutos depois retorna acompanhado de um cara usando óculos fundo de garrafa, trajando uma calça jeans surrada, camiseta tão surrada quanto a calça, sandálias "havaianas" e uma mochila de lona mais surrada que a calça e a camisa juntas, e meu pai que havia sido avisado do estranho a procura de Leite e saiu em busca do provável desafiante do filho.
As gargalhadas do meu irmão podiam ser ouvidas a dezenas de metros, até que ele entrou na academia e deu o comando de "Tchariô, Kyosanim Kiunhê"...
Nínguem entendeu nada! Meu irmão não era faixa-preta ainda, não era costume seu exigir o Kyosanim para ele...
O cara com jeitão largadão era quem mesmo?
Orides Stralis, o "Folgado"!
Caramba, foi decepcionante...
Aqueles óculos...
Como faltavam pouco menos de 10 minutos para o fim da aula, ficou definido que ele ficaria lá em casa até a segunda, dia da próxima aula.
Finalizada a aula, fomos todos ao almoço, todos os alunos olhavam com desconfiança para ele, todos imaginando que ou meu irmão teria inventado sobre seus feitos, ou aquele não seria o verdadeiro Orides.
Durante todo o dia o melhor companheiro de Folgado foi o meu pai, graças a "cachacinha" de alambique apresentada a ele.
Conversava com todos, quer dizer, ouvia a todos, pois falava pouco e arrastado a ponto de acharmos que seria o efeito da tal cachacinha.
Dos seus feitos não citou qualquer um, só incentivava os alunos treinar muito (coisa que todos achavam que ele não fazia...).
O final de semana seguiu divertido até o domingo, quando Folgado desapareceu logo cedo sem falar com ninguem.
Desespero total de meus familiares, a busca seguiu pelos bairros próximos e nenhum vizinho o havia visto.
Até que Leite teve uma idéia e foi procurá-lo em um local que era o point da diversão em Dias d`Ávila, o Rio Imbassay.
Rumamos naquela direção na Brasília (vixi...) de meu pai e lá estava ele, rodeado de pessoas, bebendo e conversando como se fosse um velho morador da cidade, completamente à vontade entre às pessoas que conhecera há pouco.
Sentamos para acompanhar, afinal, ninguem queria deixar ele ir embora. Eu não parava de me perguntar como aquele cara poderia ser um campeão.
Chegamos para o almoço do domingo às quinze horas e o único que não tomou esporro de minha mãe lógicamente fui eu, afinal era uma criança.
Na segunda-feira a academia estava lotada, e após as devidas saudações e o juramento do Taekwondo, o Professor Orídes, trajando um dobok que ninguem acreditava que havia sido branco um dia, iniciou a aula.
E todos entenderam o velho ditado que diz que "um bom livro não deve ser julgado pela capa!"
Uma aula perfeita: bases firmes, ataques e defesas com energia, execução dos "hiangs" (formas) com contração e respiração na medida certa.
Mas o melhor ainda estava por vir, as aplicações dos chutes eram de uma velocidade espantosa e de uma flexibilidade que ninguem poderia esperar do cara que havia passado o final de semana conosco...
Na hora do "derion" (luta/kyorugui) lutou com todos, respeitando os limites de cada um, sem machucar qualquer um dos alunos, parando os chutes bem próximo do ponto de ataque, no máximo com um pequeno toque.
A luta com meu irmão foi uma coisa que eu nunca havia visto na vida, e todos estavam boquiabertos!
Naquele dia entendí o que tanto meu irmão nos alertava sobre vaidade demasiada e porquê não se deixava mais levar como antes pelos desafios que o faziam nas ruas para provar o Taekwondo .
O aprendizado é para nós mesmos, não para os outros!
É para ser passado como conhecimento, não demonstrado em desafios ou através de super egos.
O respeito não é imposto ao próximo, é adquirido (ou não) pelas suas qualidades.
Folgado nunca exigiu uma saudação de qualquer aluno de meu irmão, mas não havia quem não o fizesse de coração.
Aquela sua estadia que seria de dois dias se prolongou por quase um mês, tempo que sempre se repetia quando ele inventava de "aparecer" por lá.
Por longos anos foi companheiro de treinos e viagens (e farra) do meu irmão e de Índio, trazendo para nossa equipe muita experiencia.
Tratava minha mãe como a uma mãe, e ela, em contrapartida o chamava a atenção todas as vezes em que os dois sumiam ou levavam mais tempo que o combinado no Rio de Janeiro, ou quando inventavam de viajar de carona, mas sempre deixava um sorriso escapulir pelo canto da boca quando ele com a cara mais deslavada jurava que seria a "última vez"...
Folgado sempre foi uma figura querida por todos, suas histórias são dignas de um livro (ou vários), e não se fala em Folgado sem lembrar das suas peripécias por todos os cantos por onde passou.
Infelizmente, nosso Mestre Orides "Folgado" Stralis nos deixou no último dia 19, vítima de um atropelo.
Partiu deste plano deixando muita saudade, mas muito conhecimento para quem conviveu ao seu lado.
Deve estar agora ao lado do meu irmão, de Brito "Baiano", Mestre Cardoso e "Bocão", fazendo a maior algazarra no céu...
Eu posso dizer sem medo de errar que a minha caminhada no Taekwondo foi sempre sendo observado de perto por verdadeiros "Mestres", e principalmente AMIGOS DE VERDADE que nunca exigiram nada em troca!
A todos eles deixo minha saudação:
KWANJANINS, KYUNHÊ!
Em tempo: O Mestre Orides foi promovido post mortem à 7º Dan, pelo presidente da CBTKD, Grão Mestre Jung Roul Kim.